Ao som de um cd onde se lê "o essencial é invisível aos olhos"
Despir um corpo a primeira vez
...É um acontecimento etre dois deuses. Não se pode profanar o instante. E os amantes devem manter o ritmo dos altares. Porque, embora nesses rituais haja sempre panos e trajes para agradar ao Olimpo, é para a nudez total que o céu quer nos arrebatar.
As mãos tem que ter um compasso certo. Um andamento ou largo de Bach nos gestos, compondo a alegria de homens e mulheres. As mãos, sobretudo, não podem apressar. Com os olhos tem que aprender e, com a ponta dos dedos, comtemplar os acordes que irão surgindo quando, peça por peça, o corpo for se desvestindo ao pé do altar.
Antes de se tocar com as mãos e os lábios, na verdade, já se tocou o corpo alheio com um distraído olhar sempre envolvente. E ninguém toca um corpo impunemente. Despir um corpo a primeira vez não pode ser coisa de poeta desatento colhendo futilmente a flor oferta num abundante canteiro de poesia. Nem pode ser coisa de puro microscopista que olhe as coisas sabiamente. Se tiver que ser de sábio o lhar, que seja do botânico, porque esse sabe aflorar em cada espécie o que cada uma tem de mais secreto ou distante, o que cada uma sabe dar!
Despir um corpo pela primeira vez é como conhecer pela primeira vez uma cidade. E os corpos das cidades tem portas para abrir, jardins para repousar, torres e altitudes que excitam a visitação. Algumas cidades sitiadas caem ao som de trombetas, outras se entregam porque não mais suportam a sede e a fome de amar. As cidades tem limites de resistência. E, como o corpo, querem alguém que as habite com intimidade solar. Gêngis Khan, Átila ou qualquer conquistador vulgar tem com as cidades e corpos uma estranha relação. O objetivo é a devassa e a dominação. Conquistada a cidade, a ordem é marchar.
Por isso, cuidado para não se acercar do outro apenas com esse olhar guerreiro ou com esse olhar tolo de turista. O turista, embora procure sabores típicos, é um voyerista que só quer fotografar. Mas há turistas e turistas, e o pior turista é aquele que olha sem olhar. É um perdido marinheirro que está preso em algum porto, que não se permite num outro corpo inteiramente desembarcar. Quando os corpos se tocam por acaso, como se estivessem indo em direções diferentes, o que ocorre é desperdício. Não se pode tocar um corpo impunemente. E para se tocar um corpo completa e profundamente num dado instante, os corpos tem que convergir. A descoberta do outro é isso: é convergência.
Despir um corpo a primeira vez é como despir um presente. Por isso não se pode desembrulhá-lo assim, às pressas, embora a gula nos precipite afoitos sobre a pele em oferta. Não se pode com mãos infantis e descompassadas ir rasgando invólucros, arrebentando cordôes com a gula que as crianças só tem em confeitarias antes da indigestão.
Despir um corpo a primeira vez, para usar uma imagem conhecida, é mais do que ir a primeira vez a Europa. Pode ser, ao contrário, desembarcar pela primeira vez na América sobre a nudez do desconhecido. É descobrir na pele alheia, mais que a pele dela, a nossa pele índia. E volto àquela imagem: despir um corpo pela primeira vez é tão marcante quanto a primeira vez que um mineiro viu o mar. Um corpo é surpresa sempre. E o que se vê nas praias, nessa pública ostentação, nesse exercício coletivo de nudez total negaceada, em nada tira a eufórica contenção do ato, quando os dedos vão desatando botões e beijos e rompendo as presilhas das carícias. Despir um corpo a primeira vez não é coisa para amador. Só se o amador for amador na arte de amar. Porque o corpo do outro não pode ter a sensação de perda, mas a certeza de que algo nele se somou, que ele é um objeto luminoso que a outros deve iluminar.
Um corpo a primeira vez, no entanto, é frágil e pode trincar em alguma parte. E os menos resistentes se partem quando aquele que os toca, os toca apenas com a cobiça e nunca coma generosa mansidão de quem veio pela primeira vez, e sempre, para amar!
- Affonso Romano de Sant’Anna
...É um acontecimento etre dois deuses. Não se pode profanar o instante. E os amantes devem manter o ritmo dos altares. Porque, embora nesses rituais haja sempre panos e trajes para agradar ao Olimpo, é para a nudez total que o céu quer nos arrebatar.
As mãos tem que ter um compasso certo. Um andamento ou largo de Bach nos gestos, compondo a alegria de homens e mulheres. As mãos, sobretudo, não podem apressar. Com os olhos tem que aprender e, com a ponta dos dedos, comtemplar os acordes que irão surgindo quando, peça por peça, o corpo for se desvestindo ao pé do altar.
Antes de se tocar com as mãos e os lábios, na verdade, já se tocou o corpo alheio com um distraído olhar sempre envolvente. E ninguém toca um corpo impunemente. Despir um corpo a primeira vez não pode ser coisa de poeta desatento colhendo futilmente a flor oferta num abundante canteiro de poesia. Nem pode ser coisa de puro microscopista que olhe as coisas sabiamente. Se tiver que ser de sábio o lhar, que seja do botânico, porque esse sabe aflorar em cada espécie o que cada uma tem de mais secreto ou distante, o que cada uma sabe dar!
Despir um corpo pela primeira vez é como conhecer pela primeira vez uma cidade. E os corpos das cidades tem portas para abrir, jardins para repousar, torres e altitudes que excitam a visitação. Algumas cidades sitiadas caem ao som de trombetas, outras se entregam porque não mais suportam a sede e a fome de amar. As cidades tem limites de resistência. E, como o corpo, querem alguém que as habite com intimidade solar. Gêngis Khan, Átila ou qualquer conquistador vulgar tem com as cidades e corpos uma estranha relação. O objetivo é a devassa e a dominação. Conquistada a cidade, a ordem é marchar.
Por isso, cuidado para não se acercar do outro apenas com esse olhar guerreiro ou com esse olhar tolo de turista. O turista, embora procure sabores típicos, é um voyerista que só quer fotografar. Mas há turistas e turistas, e o pior turista é aquele que olha sem olhar. É um perdido marinheirro que está preso em algum porto, que não se permite num outro corpo inteiramente desembarcar. Quando os corpos se tocam por acaso, como se estivessem indo em direções diferentes, o que ocorre é desperdício. Não se pode tocar um corpo impunemente. E para se tocar um corpo completa e profundamente num dado instante, os corpos tem que convergir. A descoberta do outro é isso: é convergência.
Despir um corpo a primeira vez é como despir um presente. Por isso não se pode desembrulhá-lo assim, às pressas, embora a gula nos precipite afoitos sobre a pele em oferta. Não se pode com mãos infantis e descompassadas ir rasgando invólucros, arrebentando cordôes com a gula que as crianças só tem em confeitarias antes da indigestão.
Despir um corpo a primeira vez, para usar uma imagem conhecida, é mais do que ir a primeira vez a Europa. Pode ser, ao contrário, desembarcar pela primeira vez na América sobre a nudez do desconhecido. É descobrir na pele alheia, mais que a pele dela, a nossa pele índia. E volto àquela imagem: despir um corpo pela primeira vez é tão marcante quanto a primeira vez que um mineiro viu o mar. Um corpo é surpresa sempre. E o que se vê nas praias, nessa pública ostentação, nesse exercício coletivo de nudez total negaceada, em nada tira a eufórica contenção do ato, quando os dedos vão desatando botões e beijos e rompendo as presilhas das carícias. Despir um corpo a primeira vez não é coisa para amador. Só se o amador for amador na arte de amar. Porque o corpo do outro não pode ter a sensação de perda, mas a certeza de que algo nele se somou, que ele é um objeto luminoso que a outros deve iluminar.
Um corpo a primeira vez, no entanto, é frágil e pode trincar em alguma parte. E os menos resistentes se partem quando aquele que os toca, os toca apenas com a cobiça e nunca coma generosa mansidão de quem veio pela primeira vez, e sempre, para amar!
- Affonso Romano de Sant’Anna
_____Isso embasa uma teoria muito controversa na qual insisto em negar meu karma e afirmo que fui punido impunemente. Arbitrariedade é isso aí.
_____A trégua veio e com ela biscoitos amantegados e chocolate quente. Provocação pouca é bobagem. E acabei num palco. Segundo testemunhas, havia um sorriso grande em mim. É agosto e está garoando na neblina da madrugada. Não tem como eu não sorrir. Usufruir parece ser a ação mais adequada prá mim no momento.
_____A trégua veio e com ela biscoitos amantegados e chocolate quente. Provocação pouca é bobagem. E acabei num palco. Segundo testemunhas, havia um sorriso grande em mim. É agosto e está garoando na neblina da madrugada. Não tem como eu não sorrir. Usufruir parece ser a ação mais adequada prá mim no momento.
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